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MARCO DREER: Este é Sinal-Ruído, um conjunto de histórias de acervos e coleções brasileiras contadas por pessoas que, de diferentes maneiras, preservam a cultura e o patrimônio. Eu sou Marco Dreer e este podcast é produzido pela VIA 78, uma iniciativa voltada para serviços e para o ensino da preservação audiovisual.
Neste primeiro episódio, vamos conhecer o LUPA – Laboratório Universitário de Preservação Audiovisual, que funciona no Departamento de Cinema e Vídeo da Universidade Federal Fluminense. É o primeiro laboratório universitário brasileiro que se tem notícia dedicado exclusivamente à preservação audiovisual. Fomos até a UFF, em Niterói, conversar com professor Rafael de Luna Freire, coordenador do LUPA, para saber mais detalhes sobre esse pioneiro projeto.
RAFAEL DE LUNA: O LUPA surgiu quando eu ingressei por concurso na universidade, eu já tinha uma trajetória ampla no campo da preservação, e também na pesquisa histórica. E eu sempre percebi, por exemplo, durante o tempo em que eu trabalhei na Cinemateca do MAM, o afastamento entre a universidade e os arquivos de filme sobre o campo da preservação e da pesquisa. Fui percebendo como na universidade, naquele momento, havia a possibilidade de financiamento, de desenvolver pesquisas, mas uma demanda também de lidar com a materialidade dos filmes, das cópias que estavam nos arquivos, ou seja, como era necessário aproximar ambos.
E, ao mesmo tempo, uma reflexão de que a UFF precisava guardar a sua própria memória, em particular o Departamento de Cinema, e que a produção audiovisual principal do curso de Cinema eram filmes que não eram filmes profissionais, não eram parte desse cânone que teriam espaço numa Cinemateca Brasileira ou numa Cinemateca do MAM. Eram curtas-metragens, muitos em bitolas 16mm semi-profissionais. Então, a gente pensou que talvez o nosso foco dentro do LUPA — e aí se criou esse nome: Laboratório Universitário de Preservação Audiovisual — poderia ser uma iniciativa não só para desenvolver uma estrutura na universidade no campo da preservação, mas de ter uma atividade de preservação, um arquivo, com um foco regional e temático.
Eu acho que era essa necessidade de a gente ter no Brasil uma rede de arquivos trabalhando em conjunto e dividindo responsabilidades, e não todo mundo tentando preservar as mesmas coisas, as mesmas grandes obras. Acho que cabe à Cinemateca Brasileira e à Cinemateca do MAM [preservar] puramente longas-metragens ficcionais, comerciais. E o que o LUPA poderia fazer? Primeiro, esse recorte regional, do Estado do Rio. A maior parte, se não todos os arquivos regionais audiovisuais do Estado do Rio, estão na cidade do Rio de Janeiro. Niterói, como antiga capital do Estado do Rio, poderia olhar mais para o interior do Estado do Rio, para fora da capital. Então a gente tinha essa perspectiva fluminense. E, ao mesmo tempo, não focar no cinema profissional. A gente pensou inicialmente na ideia do cinema não-profissional ou do amador, no qual a gente inseriria, por exemplo, a produção universitária. Não são filmes profissionais, não são exibidos em salas de cinema.
Então, a gente pensou nesse recorte temático e regional (cinema amador fluminense), no qual o cinema realizado pela UFF, os filmes 16mm, os filmes de estudantes — não apenas os filmes de conclusão, mas também os exercícios em sala de aula — também fariam parte. Então, a gente decidiu criar o Laboratório Universitário de Preservação Audiovisual tendo como foco a preservação e a promoção do cinema amador fluminense.
MARCO: Perguntei ao Rafael se não haveria uma motivação política na criação do LUPA, já que o laboratório faz uma aposta na regionalização dos arquivos audiovisuais.
RAFAEL: Total. Toda essa discussão teve uma questão política que eu acho que era transformar um argumento numa questão concreta. Primeiro que seria algo ligado a uma universidade federal. Então, seria um arquivo federal, assim como a Cinemateca Brasileira, mas não está ligado ao Ministério da Cultura, e sim ao Ministério da Educação. Mas é um arquivo federal. E, segundo, essa ideia de que as tarefas têm que ser compartilhadas, a gente não vai reinventar a roda. A gente percebe, na verdade, que os arquivos regionais são aqueles que têm mais facilidade para prospecção local. E, sobretudo, a gente também tem que pensar nesses arquivos dividindo responsabilidades e dividindo recursos, recursos de acordo com as responsabilidades assumidas.
Então, eu acho que era uma aposta também em criar algo que concretamente daria sustentação a essa disputa política, a essa argumentação política de que a preservação audiovisual no Brasil tem que se sustentar não numa única cinemateca que concentra poderes, recursos e responsabilidades — sobretudo responsabilidade que são demais para uma instituição, é até injusto exigir isso de uma única instituição –, mas numa rede de instituições que trabalhem colaborativamente. No início, por exemplo, o LUPA foi criado enquanto eu estava na gestão da chefia do Departamento, quando a gente firmou pela primeira vez um convênio formal da UFF com a Cinemateca do MAM. Uma ideia mesmo de colaboração: a gente privilegiar, por exemplo, os acervos não-profissionais e amadores do MAM, e, ao mesmo tempo, a gente envia para o MAM algum material que seja mais adequado para preservar lá. Essa ideia de não disputar, mas trabalhar em conjunto.
MARCO: Em seguida, Rafael nos falou um pouco sobre as primeiras obras incorporadas pelo LUPA, começando pela produção dos próprios alunos da UFF.
RAFAEL: O primeiro acervo que a gente começou a tomar conta é um acervo que já estava aqui, que é o acervo de filmes da UFF. A gente está tentando com que o LUPA se encarregue e assuma essa responsabilidade, porque no Departamento não tem um funcionário, não tem um setor. Tem uma comissão de acervo, mas é sempre um assunto que não tem uma pessoa ou alguém formalmente encarregado de cuidar desses acervos. A gente tinha isso. Então, o primeiro passo foi tentar resgatar essa memória de alguns projetos, de localizar onde está sobretudo a produção em película da UFF — que atualmente já está razoavelmente organizada: cópias na Cinemateca do MAM e matrizes no CTAv (Centro Técnico Audiovisual).
A gente tinha esse outro enfrentamento, que começamos de forma mais direta, que é o grande gap que a gente tem da produção digital, preservar essa produção digital. A gente tem um problema de resgatar essa preservação do início dos anos 2000, da transição da película — porque a película, por mais antiga que seja, a gente sabe onde está. Onde estão os filmes realizados pelos alunos da UFF em digital de 10 anos atrás? E, ao mesmo tempo, focando nesse aspecto das bitolas estreitas, dos formatos não-profissionais, a gente recebeu uma doação anônima — que foi um pouco um dos motivos da gente tirar de fato o LUPA do papel — que veio de um antigo antiquário, que se adequava perfeitamente ao nosso perfil: eram filmes em 9,5mm, um formato amador, muito utilizado no Brasil entre os anos 1920 e os anos 1950, sobretudo da marca Pathé-Baby, que eram feitos por um cineasta amador, na cidade do Rio de Janeiro e em Teresópolis, entre os anos 1920 e os anos 1940. Então a gente incorporou essa doação ao LUPA, e foi um motivador para tentar tirar o LUPA do papel.
Então, através do convênio com o MAM, a gente pediu que o MAM solicitasse à Cinemateca Brasileira a digitalização desses [filmes de bitola] 9,5mm. Eles foram digitalizados e apresentados pela primeira vez num evento realizado pela UFF, a Jornada de Estudos em História do Cinema Brasileiro, que teve uma parceria com a Cinemateca do MAM. Então uma parte do evento foi realizado lá e a gente apresentou pela primeira vez uma compilação desses filmes, que são muito interessantes: tanto filmes amadores realizados por ele, quanto cópias de documentários distribuídos nessa bitola amadora. Então, se fazia filmes amadoristicamente, mas também se via filmes em casa, muito antes do celular. E isso foi importante para uma perspectiva que a gente teve desde o início de que o LUPA priorizasse a difusão livre e aberta. Então esses filmes foram digitalizados, e assim que foi criado o site do LUPA no início deste ano todos ficaram disponíveis lá para visualização gratuita.
MARCO: Fiquei curioso em saber sobre qual seria a relação desta jovem geração de alunos de Cinema com a película cinematográfica, uma vez que eles vivem imersos em um contexto totalmente digital. Há um interesse dos alunos pelos antigos formatos e pelas antigas formas de projeção?
RAFAEL: Há um fascínio, sim, ainda, por ser algo relativamente próximo, mas muito distante. A maior parte dos alunos nunca viu um rolo de película. Muitos alunos nunca viram a projeção em película. Então, embora não seja algo da época das avós deles e não faça parte da sua realidade cotidiana, não faz tanto tempo ainda. Então eu acho que há um interesse, e me surpreendeu o engajamento de muitos no LUPA. A gente fez uma série de atividades aqui voltadas para a preservação dos equipamentos. Eu acho que há uma curiosidade, sempre há, e sobretudo por algo que agora definitivamente não faz parte do comum do mercado, do dia a dia da realização. Ou seja, eu diria que é algo já do passado mas não tão distante. Mas é algo que vai mudando a cada mês.
Mas a gente teve experiências muito interessantes aqui. Por exemplo, eu acho que a gente não oferecia tão regularmente em outros momentos em que se teve esse atração por ver uma película, [a possibilidade de] manuseá-la, mas a gente fez uma experiência de projeção de película. Então, eu acho que isso é uma coisa que atrai, essa ideia de você realmente projetar um rolo, porque hoje você tem essa experiência da própria projeção de filmes, mesmo em digital, cada vez mais rara. As pessoas assistem filme em casa, no próprio aparelho. Então, essa ideia também de você muito claramente, através da projeção em Super 8 ou 16mm, dar acesso a esse filme para outros, ser o responsável pela visão dos filmes, acho que é uma coisa interessante e que se torna mais atraente pelo fato disso estar sendo cada vez mais raro.
MARCO: Um desafio que o LUPA deverá enfrentar também envolve como preservar a produção audiovisual digital. O Rafael nos falou sobre algumas possíveis estratégias nesse sentido.
RAFAEL: Digitalizando esse acervo antigo — por exemplo, esses filmes 9,5mm — a gente vai ter que lidar com arquivos digitais do mesmo modo que está lidando com os filmes que são feitos. Então seria tentar juntar as duas coisas. A gente tem uma pretensão agora, com um projeto que está sendo desenvolvido, de adquirir um scanner para digitalizar os próprios filmes da UFF feitos em película — que hoje muitos estão inacessíveis, só tem as cópias em película — e ao mesmo tempo criar uma infraestrutura digital para a digitalização desses filmes, gerar representantes digitais desses filmes, e também para a nova produção. O LUPA, por exemplo, já está cadastrado no Legatum, iniciativa do professor Rubens [Ribeiro Gonçalves da Silva], da Universidade Federal da Bahia. Então são várias frentes diferentes para a gente tentar não se descuidar dessa questão.
E eu já acho que a gente já tem aqui na UFF — e eu diria que isso, na verdade, não é um problema exclusivo nosso — uma lacuna muito grande de preservação do início da produção digital aqui do curso de Cinema. Mesmo em termos de uma filmografia de dados básicos. A gente está tentando compilar pela primeira vez uma filmografia única da UFF. A gente tem essa dificuldade de ter ao menos os dados, [sem contar] as cópias dos filmes ali do início dos anos 2000.
MARCO: Outro investimento interessante que o LUPA tem feito é na preservação e restauração de equipamentos, inclusive antigos projetores de cinema.
RAFAEL: Um outro trabalho quem a gente tem feito é a organização dos equipamentos da UFF, ou seja, essa memória dos artefatos materiais, das câmeras, dos refletores. A gente já conseguiu organizar coisas que estavam absolutamente largadas, jogadas, como simplesmente equipamentos que não são mais usados, que [supostamente] não têm mais importância. A gente já conseguiu limpar, organizar, estamos catalogando, querendo fotografar e colocar esse acervo no site também.
A gente já tem um acervo, por exemplo, de câmeras de vídeo muito interessante. Eu acho que a UFF representa bem um certo momento de uma tecnologia do vídeo analógico dos anos 1990, com câmeras SD, MiniDV, HDCam, diversos exemplares. Então, a ideia também é que a gente passe a preservar essa produção também, que eu concordo que está em grande risco, mas começamos pela parte dos equipamentos. Já estamos organizando e a gente quer depois fazer exposições etc.
MARCO: Nossa conversa terminou com uma reflexão do Rafael sobre o campo da preservação audiovisual em tempos de crise. O que fazer numa situação tão adversa como a que vivemos agora?
RAFAEL: Eu acho que a preservação audiovisual está dentro do campo das Artes, da Cultura e da memória, em que a gente vive inegavelmente um grande desânimo, perspectivas muito ruins, não só pela falta de recursos, mas às vezes por uma ação direta de revanchismo para prejudicar — através do sucateamento, do estrangulamento dos orçamentos — instituições desse campo. Eu acho que é uma situação extremamente preocupante, mas se a gente ficar sentado chorando não vamos fazer nada. O LUPA surge neste momento numa resistência. Então, obviamente que a gente enfrenta muito mais dificuldades do que a gente precisava. Em vez de apoio e suporte, a gente encontra mais resistência. Mas isso não deve nos paralisar. Pelo contrário, como eu falei, o LUPA tem uma perspectiva política muito forte também de não ceder a esse movimento de esvaziamento, de estrangulamento, de desesperança.
Então, eu acho que a gente tem também que pensar em novas estratégias de luta, novas estratégias de parceria, novas estratégias de alavancar recursos etc. — que são muito difíceis, são mais trabalhosos. Quem me dera se eu tivesse aqui condições de trabalhar dignas, que a gente não precisasse ter tanto trabalho para conseguir o mínimo. Mas muitas vezes são nos momentos de crise que a gente consegue achar novas soluções, novos caminhos. Então, ao mesmo tempo que eu não consigo deixar de ter um certo desânimo com essa dificuldade toda, eu tenho uma esperança porque mal ou bem a geração que está ingressando na universidade agora com essa perspectiva muito tenebrosa de futuro, de sequer ter universidade pública no futuro, eu acho que talvez ela possa ser uma geração ainda mais engajada e resistente.
MARCO: Se você quiser saber mais sobre o LUPA e suas atividades, acesse o site www.cinevi.uff.br/lupa, ou mande um e-mail para lupauff@gmail.com.
Este foi o primeiro episódio de Sinal-Ruído. Agradecemos especialmente ao professor Rafael de Luna por nos receber para este podcast. E se você quiser saber mais sobre preservação audiovisual, acesse www.via78.com.br.